A Mulher Ferida
The Wound Woman / La Mujer Herida
Bordar, em efeito, é arte antiga e um ato lento.
Consiste em embelezar um tecido com fios,
Enchendo-o de marcas, sinais, histórias.
É um ir e vir da agulha que permite que você
sinta, em seus próprios templos,
a dimensão do problema da violência.
Bordar um tecido é preparar o pano onde soprar
e limpar as lágrimas coletivas.
O bordado é um trabalho de cuidado.
É a resistência da beleza e tradição
e serve para transgredir o mandato de violência.
Bordar, é necessário repeti-lo,
É um ato de paz e transformação.
Tradução livre do trecho "Nombres para el tejido social. Levantando un memorial con hilo y agujas" Bordados de paz, memoria y justicia: un proceso de visibilización de FRANCESCA GARGALLO CELENTANI
Este projeto nasce do espanto de vê-las vivas. Corpos femininos desfilam com suas coleções de marcas de combate, com feridas latentes e inaudíveis. Elas estão vivas, mas e essas feridas? Há um corpo comum? Há um arquétipo desconhecido? A pergunta sobre esse desejo urgente de abandonar o corpo-que-não-aguenta-mais para habitar um corpo lúcido, um corpo são. O quanto ele pode aguentar? O que pode o corpo? O revelar dessas potências subjetivas exige que a matéria desate de si e para tal é necessário frear, escutar, acolher, o que torna o ato artístico do bordar uma ferramenta vital para essa experiência.
Bordar, em efeito, é um ato lento. É um ir e vir de movimentos repetitivos que proporcionam um espaço-tempo de meditação. Quando realizados em grupo, esses efeitos ganham proporções ainda maiores. Espontaneamente é gerado um ambiente de acolhimento e escuta amplamente generoso e seguro. O bordado e a escuta são instrumentos para a criação do arquétipo d'A Mulher Ferida aqui desejado e, sendo um exercício de paciência, é mais um caminho para a cura dessas lesões.
A pesquisa surgiu a partir do encontro da artista com a figura “Wound Man” (O Homem Ferido). O Homem Ferido foi um diagrama bastante reproduzido durante a Idade Média em manuscritos médicos europeus dos séculos XIV e XV. A ideia era mostrar os possíveis ferimentos que o homem poderia sofrer durante batalhas, acidentes ou através de pragas mas que pudesse suportar, mantendo-se vivo. Acompanhando a imagem vinham textos explicativos com procedimentos que deveriam ser tomados para a cura. Como as mulheres não participavam de batalhas e o conhecimento sobre seus corpos ainda não era propriedade do estado e da religião (leia-se do capital masculino), não há indício de que existisse um diagrama equivalente para a figura feminina. A que se aproxima seria a "Disease Woman" (A Mulher Doente), a figura de uma mulher de véu e gestante, que expõe uma visão aristotélica clássica, do corpo feminino percebido como biologicamente inferior, intrinsecamente fraco e predisposto à doença. Dito isso, porque não haver um diagrama contemporâneo do arquétipo da mulher ferida criado pelas próprias mulheres? Feridas unicamente acumuladas pela condição de habitar um corpo feminino, que é atingido em níveis sutis e visíveis e se afasta da autoconsciência, submetendo-se ao controle externo, mas que ainda assim mantém-se vivo.
Através de estudos da simbologia corporal e da troca de saberes (conhecimentos de culturas ancestrais, medicina oriental, filosofia, religiões, medicina natural, yoga, teorias feministas, etc) essa inteligência tomaria uma forma potente. Através de exercícios de escrita criativa, a criação direcionada da linha da vida das mulheres estimula uma redescoberta espontânea das vivências mais sutis e das dores mais subjetivas. Seria possível, então, vivenciar o dispositivo artístico Self-Vudu - Bonecas Bordadas, reforçar essa ampliação de consciência. Advinda de uma imersão na linha da vida das participantes, a vivência escancara suas particularidades e subjetividades por meio da criação de bonecas de pano, as vudus. E, costurando por meio do intercâmbio de experiências culturais e políticas com grupos sócio-econômicos diversos é possível criar uma teia múltipla tendo o corpo da mulher como fio condutor.
O resultado positivo das vivências já realizadas pela artista (e fortalecidas por atividades no Sesc-SP, Senac-SP e USP em 2019) mostrou que há uma predisposição à esse exercício, e, também, se apropriando da tradição do bordado como atividade prioritariamente feminina, temos um terreno muito fértil para o acolhimento e o fortalecimento das participantes e do público feminino. “Eu demorei a entender que eu podia ser feliz, mesmo minha mãe não o sendo”. Essa foi uma das falas de uma participante idosa da vivência Self-Vudu realizada no Sesc Belenzinho, em São Paulo, em 2019. Falas como essas são muito compartilhadas nos encontros, as dores que as filhas herdam de suas mães. A importância de dar espaço a essas falas e tantas outras é um dos fatores que mais retroalimentam a pesquisa da artista. Há muito para ser dito e compreendido. Muitas mulheres sentem, num primeiro momento, o receio de compartilhar alguns depoimentos mais pessoais. Por medo, vergonha ou por não aceitação. À medida que outras companheiras compartilham, há um certo reconhecimento e identificação, o que torna o ambiente acolhedor e seguro. Uma vez que elas começam, o desejo é lançar mais a sua voz. A dor é legítima e deve ser anunciada.